A Travessia: O Papel do Psicólogo na Jornada Terapêutica

O psicólogo não tem uma varinha mágica. Não tem um livro de respostas definitivas. Não carrega ninguém no colo nem dita o caminho que deve ser seguido. O papel do psicólogo não é salvar, mas sim estar presente. Ele é um facilitador, um companheiro de jornada, um observador atento do processo que se desenrola diante dele.

No campo da Gestalt-Terapia, essa função ganha ainda mais profundidade. O terapeuta não é um técnico distante que analisa e classifica o cliente, mas alguém que se coloca em relação, trazendo sua presença autêntica para o encontro. Ele ilumina os pontos cegos, desafia padrões repetitivos, oferece suporte quando necessário. Mas a travessia sempre pertence ao outro.

O Papel do Psicólogo Clínico

Dentro do consultório, esse papel se intensifica. O psicólogo clínico precisa ser um espelho que reflete, um espaço de acolhimento e, ao mesmo tempo, de confronto. O trabalho terapêutico é um convite para que o cliente olhe para si mesmo com honestidade, sem máscaras ou autoenganos.

Mas essa caminhada não é fácil. Ela exige coragem, abertura e disposição para encarar o que está oculto. Exige estar disposto a dar um passo no desconhecido. Aqui entra a metáfora do iluminador teatral.

O Psicólogo como Iluminador

Como um iluminador teatral, o psicólogo joga luz sobre as questões para permitir que o cliente explore, em segurança, aquilo que precisa ser visto. Ele não inventa a história, não cria os personagens nem escreve o roteiro. Mas, com o jogo de luz e sombra, ele revela nuances, destaca detalhes esquecidos e permite que o cliente enxergue sua própria narrativa com mais clareza.

Essa iluminação, no entanto, não garante a travessia. A escolha sempre pertence ao cliente.

A Piada Mortal e a Escolha de Atravessar

Na famosa história em quadrinhos A Piada Mortal, o Coringa conta ao Batman uma anedota:

“Dois loucos estão fugindo de um hospício à noite. Eles chegam ao telhado e percebem um vão entre os prédios. O primeiro louco salta e atravessa. O segundo hesita. O primeiro então diz: ‘Eu tenho uma lanterna. Vou apontá-la para que você possa atravessar pelo feixe de luz.’ O segundo louco balança a cabeça e responde: ‘Você acha que eu sou maluco? E se você apagar a luz no meio do caminho?'”

O terapeuta é aquele que já percorreu parte do caminho, que conhece o abismo, mas não pode atravessá-lo pelo outro. Ele pode acender a lanterna e mostrar possibilidades, e é importante que se comprometa a não a apagar, mas a escolha sempre pertence ao cliente. O processo terapêutico se dá nesse instante de hesitação, entre quem se é e quem se pode tornar. Para mudar, é preciso dar o salto.

A Jornada de Inana e a Transformação no Processo Terapêutico

Essa travessia ressoa no mito sumério de Inana e sua descida ao submundo. Para alcançar as profundezas, Inana precisa deixar para trás símbolos de sua identidade. Nua e desprotegida, enfrenta Ereshkigal, sua irmã sombria, e ali encontra a morte—não uma morte literal, mas a dissolução de sua antiga identidade. Com a ajuda do vizir, um aliado que lhe oferece um caminho de retorno, Inana ressurge transformada.

No contexto terapêutico, o psicólogo é tanto esse aliado quanto os guardiões do submundo, que desafiam o cliente a confrontar suas sombras. Como afirma Hajo Banzhaf, “Ao desistir de sua velha identidade e solucionar seu lado sombrio, Inana tornou-se totalmente nova, inteira e sã.” (BANZHAF, 1997, p. 65-67). O terapeuta não impõe a mudança, mas sustenta o espaço onde ela pode acontecer.

A Terapia Como Um Espaço de Respiração e Escolha

A psicoterapia não é um processo mecânico, mas um encontro vivo entre duas pessoas. Como destaca Cida Barreto, “A terapia será o lugar de enfrentamento das vulnerabilidades, cuidar dos ferimentos existenciais, e deverá ser um espaço para um respiro.” Através do vínculo e da presença, o terapeuta convida o cliente a experimentar novas formas de ser.

Ao longo do caminho, há resistências, medo e incerteza. Mas, como diz Frazão, “O desejo é que, com o trabalho gestáltico, o que se repete dê uma chance ao novo, o vazio dê lugar à criação e o que era negado possibilite uma abertura para autoaceitação de quem se é.” (FRAZÃO, 2021, p. 185).

O psicólogo pode iluminar o caminho, mas a travessia é sempre uma escolha do cliente. Entre o medo e a possibilidade, entre a hesitação e o salto, reside o verdadeiro espaço da transformação.

Referências

BANZHAF, H. As Chaves do Tarô: Uma Introdução ao Tarô com muitos Esquemas de Disposição de Cartas. Ed. Pensamento. São Paulo. (1997)

FRAZÃO, L. M. Diversas obras da coleção Gestalt-terapia: fundamentos e práticas. Ed. Summus. São Paulo. (2014, 2016, 2021)

BARRETO, Cida * Citação mencionada em contexto de supervisão realizada na Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo. (2022)

MOORE, A., & BOLLAND, B. Batman: a piada mortal. Ed. Abril. São Paulo. (1988)

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