A Descida e a Transformação
Inana, a Rainha do Céu, decide descer ao submundo para encontrar sua irmã Ereschkigal, a sombria e solitária Rainha do Inferno. Antes de partir, deixa instruções para que, caso não retorne em três dias, busquem ajuda nos deuses do alto. No caminho, atravessa sete portais e, a cada um, deve entregar um de seus adornos e vestimentas, chegando ao fim da jornada completamente nua e indefesa. Encontra Ereschkigal e os sete juízes do submundo, que a condenam à morte. Inana é pendurada em um gancho como um pedaço de carne.
Mas sua história não termina aí. Seus aliados intercedem e, através de um ritual, ela é trazida de volta à vida. No entanto, ninguém pode sair do submundo sem deixar algo para trás. Inana escolhe Dumuzi, seu amante, para ocupar seu lugar, e assim a balança do mundo se mantém em equilíbrio.
Essa narrativa é um dos mitos mais antigos sobre morte e renascimento, transformação e integração da sombra. É também um espelho para a jornada de autoconhecimento e cura — e, por consequência, para o processo terapêutico.
O Psicólogo Como Inana e Ereschkigal
O terapeuta, como Inana, desce ao inferno do outro. Ao ouvir e testemunhar dores, atravessa camadas densas e enfrenta as profundezas da psique humana. Cada sessão pode ser um portal onde algo precisa ser deixado para trás: certezas, expectativas, resistências. Em algum momento, como Inana, o psicólogo também se encontra nu, sem respostas prontas, exposto ao sofrimento que não pode ser resolvido apenas com palavras.
Mas o terapeuta também é Ereschkigal. Representa o aspecto sombrio que o paciente reluta em encarar. Muitas vezes, a dor projetada no terapeuta é a dor do próprio paciente. O que parece ser um julgamento ou um castigo é, na verdade, um convite para o enfrentamento do que foi rejeitado.
E há ainda o papel do vizir Ninschubur, que representa a parte do terapeuta que segura o fio da realidade, que organiza o plano de resgate quando necessário. Pois, assim como Inana, o terapeuta não pode permanecer no submundo para sempre.
A Travessia do Paciente
O paciente, por sua vez, é aquele que inicia a descida sem saber se conseguirá retornar. Muitas vezes, chega envolto em camadas de proteção: papéis sociais, crenças rígidas, mecanismos de defesa. Ao longo do processo, perde essas camadas uma a uma. E, no momento crucial, confronta-se com sua própria Ereschkigal, sua própria sombra.
O renascimento não é imediato. É necessário um sacrifício, uma troca. Algo deve ficar para trás — um padrão, uma narrativa, uma identidade que já não serve mais. E ao voltar à superfície, o paciente não é o mesmo que desceu. Ele retorna transformado.
O Equilíbrio Entre Luz e Sombra
A jornada de Inana nos ensina que a cura não é apenas ascender, mas também descer. Não há crescimento sem o encontro com a dor, e não há transformação sem a disposição de perder algo no caminho. O processo terapêutico é essa dança entre luz e sombra, entre céu e inferno, entre o que fomos e o que podemos nos tornar.
O terapeuta, assim como Inana, deve aprender a entrar e sair do submundo sem se perder nele. E, acima de tudo, deve lembrar que sua função não é carregar o paciente nos braços, mas guiá-lo para que ele próprio possa fazer sua travessia.