
O fenômeno da solidão da mulher preta tem sido objeto de estudo e reflexão, considerando a interseção entre gênero e raça em uma sociedade marcada pelo poder e pela desigualdade. De acordo com MIZAEL; BARROZO; HUNZIKER (2021), observa-se que as mulheres negras enfrentam desvantagens significativas em diversos indicadores sociais, como pobreza, acesso a serviços básicos e segurança. A história de opressão e desvalorização da mulher negra ao longo dos séculos contribui para essa vivência de solidão, moldada por estereótipos que afetam sua autoimagem, relações afetivas, relações de cuidado e inserção na sociedade.
A questão racial surge como um componente intrínseco e complexo no contexto da psicoterapia. A abordagem terapêutica sensível à questão racial reconhece o impacto das vivências raciais passadas e presentes na formação da identidade e nas dinâmicas psicológicas individuais e coletivas. Durante a exploração dos processos, torna-se essencial compreender como as experiências raciais moldam a percepção da cliente de si mesma, dos outros e do mundo ao seu redor.
A culpa se mostra uma presença constante, e trabalhada através da autorreflexão, a cliente é encorajada a examinar minuciosamente esses sentimentos. O trabalho terapêutico envolve desafiar os padrões autocríticos, promovendo a autocompaixão e o perdão (a si e ao outro), o que possibilita a cliente se libertar do ciclo de autodestruição e buscar um crescimento pessoal mais saudável e honesto consigo. A técnica da cadeira vazia pode ser uma ferramenta poderosa para explorar esse sentimento, permitindo à cliente explorar as vozes internas não integradas relacionadas a pessoas ausentes ou experiências passadas não resolvidas (ZINKER, 1979).
Brito (2015), ao explorar a clínica ampliada na perspectiva da Gestalt-terapia, acrescenta uma dimensão significativa ao entendimento do cuidado na terapia. Nesse contexto, a clínica ampliada não apenas reconhece a importância do cuidado no desenvolvimento humano, como também expande seu escopo. Ela promove não apenas o autocuidado e a transição da dependência dos cuidados alheios para a capacidade de cuidar de si, mas também instiga a considerar o cuidado em relação à comunidade e ao mundo. A abordagem holística e organísmica da Gestalt-terapia, aliada à clínica ampliada, convida a uma reflexão mais profunda sobre como o cuidado com o self, o cuidado com os outros e o cuidado com o mundo estão intrinsecamente interligados. Isso impulsiona os indivíduos a agirem de maneira mais justa na sociedade e a compreenderem a interconexão vital entre essas dimensões.
Perls (2002) estabeleceu uma análise profunda que transcendeu os processos meramente biológicos de fome e alimentação, introduzindo o conceito de “metabolismo mental”. Ele empreendeu uma investigação abrangente, explorando o ato de se alimentar ao longo do desenvolvimento humano, desde a fase embrionária até a mastigação completa. Essa perspectiva holística, que associa o ato de se alimentar à essência da agressão e à vitalidade do ser humano, é fundamental em sua abordagem terapêutica. Assim, compartilhou uma perspectiva em que a agressão, quando adequadamente canalizada, pode servir como uma energia vital direcionável para ação e transformação, similar à abordagem de Anansi que também destaca o potencial construtivo da astúcia (ANANSI STORIES). No entanto, ambos destacam a importância do controle e direcionamento adequados, uma vez que a agressão descontrolada pode resultar em destruição, espelhando a visão de Anansi sobre o caos quando sua astúcia não é empregada sabiamente.
A terapia gestáltica convida à exploração consciente e responsável da agressão. Reconhecendo que a raiva pode motivar ação construtiva, estabelecer limites saudáveis, expressar necessidades e enfrentar o opressor. Similar à influência de Anansi, que promove ação a partir da raiva, o objetivo é empoderar a cliente para utilizar essa força interna como catalisadora da conscientização, defesa de direitos e transformação pessoal e social. Inspirada por Anansi e suas lições, trabalhamos para fortalecer a cliente, validando seus sentimentos e experiências.
Mwanga II representa uma figura de resistência contra a colonização europeia e a influência cristã, especialmente na história dos povos negros e em Uganda. Sua trajetória demonstra a luta contra a opressão estrangeira e a defesa dos costumes e autonomia de seu povo. Essa história me proporcionou insights importantes sobre empoderamento, enfatizando que nada que foi tomado à força será cedido facilmente, sem enfrentamento. A figura de Mwanga II é um lembrete de uma batalha cultural ancestral que perdura até os dias de hoje.
A análise dessas experiências busca contribuir para uma compreensão mais profunda das complexas interações entre gênero, raça e sociedade, a fim de promover a conscientização, a inclusão e a mudança social. A exploração cuidadosa e empática das interações raciais, das percepções de pertencimento e das possíveis discriminações pode fornecer um espaço terapêutico enriquecedor para a compreensão das complexas camadas da identidade e para a promoção de um crescimento pessoal mais profundo e autêntico.
Ao examinarmos essa interseção entre a teoria gestáltica, as práticas terapêuticas e as narrativas culturais, estamos em posição de ampliar nossa compreensão sobre o sujeito em seus contextos e subjetividades. A Gestalt-terapia, com sua abordagem fenomenológica, oferece um espaço terapêutico para explorar as complexidades dessas experiências, reconhecendo o luto de identidades marginalizadas e a culpa frequentemente associada a elas. Nesse contexto, a psicoterapiadesem penha um papel crucial, fornecendo ferramentas terapêuticas para abordar essas questões, promovendo a compreensão e a resiliência em um mundo que exige uma resposta mais ampla e atenta ao cuidado integral do indivíduo.
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