Quando existir dói: entre a patologização e o desejo de pertencimento

Vivemos tempos de patologização, em que a dor de existir é frequentemente lida como sintoma. As reações humanas mais legítimas, como tristeza, cansaço, raiva, sensibilidade ou solidão, são cada vez mais traduzidas em diagnósticos. Como se sentir demais fosse, em si, um desvio. Como se estar esgotado por um mundo doente fosse uma falha pessoal.

Mulher de vestido caminha em uma trilha através de um portão de pedra, representando a saída da rota de patologização.

É fácil entrar nessa lógica. Especialmente quando estamos vulneráveis, com as emoções à flor da pele e a sensação de estar desconectadas de tudo. Basta uma consulta mal conduzida, um algoritmo insistente, ou um post de alguém que nunca viveu sua vida para plantar a dúvida: “será que eu sou o problema?”

E então surge o ciclo: autoquestionamento, vergonha, tentativa de correção. Não raro, passamos a nos enxergar como uma coleção de defeitos, síndromes e rótulos. O que poderia ser nome — e, portanto, possibilidade de cuidado — vira sentença. A ideia de tratamento se mistura à de adequação: ser mais funcional, mais sociável, menos intensa, mais “normal”.

Mas a questão não é só sobre diagnóstico. É sobre o que se perde quando o foco é apenas caber. Quantas vezes a sensibilidade foi confundida com fraqueza? Quantas vezes o pensamento mágico, o devaneio, o tempo interno, a introspecção e tantas outras potências da alma foram tachadas de disfuncionais? E se aquilo que te diferencia for também o que te sustenta?

A sociedade valoriza laços longos e amizades performativas, mas ignora a natureza fragmentada das relações adultas. Muitas vezes, ao crescer, simplesmente deixamos de caber nos moldes da infância e da juventude. Não é fracasso, é mudança. Relações terminam. Círculos se dissolvem. Vínculos mudam de forma, migram para o virtual. Não é isso que faz uma pessoa quebrada.

Close-up of dandelion seeds dispersing in the wind, symbolizing freedom and growth.

Cultivar intimidade requer disponibilidade mútua, tempo, segurança emocional. Em um mundo que exige produtividade acima de presença, isso se torna luxo. E ainda assim, o desejo de pertencimento persiste. E ele é legítimo. Não há problema algum em desejar vínculos, mesmo que ainda não saiba cultivá-los. Estar em transição também é viver.

Se há sofrimento, ele merece cuidado. Mas cuidado não é silenciamento, muito menos moldagem forçada. A medicalização pode ser um apoio quando usada com critério, ética e consentimento real. O que não pode é servir para apagar quem se é. Se um remédio te transforma em algo que não reconhece, talvez não seja cura, mas controle.

Antes de se perguntar se há algo errado com você, questione: o que em mim incomoda o mundo? E por quê?

Talvez você não seja demais. Talvez o mundo que está habitando agora é que esteja de menos.

Talvez o caminho não seja se consertar para caber, mas encontrar (ou criar) espaços onde seja possível respirar sendo quem se é. E talvez não haja nada de errado em sentir fundo, e o que você precisa mesmo é mudar de rota, fazer conexões genuínas, se recolher, recomeçar.

Silhouette of birds perched on an electric wire with a cloudy sky backdrop. Captured during the day.

Você não está sozinha nesse estranhamento.

Existem outras formas de viver. Outras pessoas que também estão questionando. E aos poucos, no tempo certo, é possível construir pertencimento — não por desempenho, mas por afinidade real. Com gentileza. Com verdade. Com espaço para ser.

A vida não precisa ser leve o tempo todo. Mas pode ser mais honesta, mais habitável. E isso já é um começo.


Nem tudo precisa de conserto. Às vezes, precisa de escuta.
Se quiser partilhar seu processo, me escreva. Vamos construir sentido juntas.

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